sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Pão, Mortadela e uma Noite Insípida

Passava das dezenove horas quando Antônia se despediu da família. Solteira, estudante de pedagogia e estagiária numa creche pública, ela deixou a residência com destino à parada de ônibus, buscando a condução que a levaria para a faculdade.

Nesse mesmo horário, Tayane já se encontrava na escola em que lecionava. Casada, mãe de duas filhas e com 12 anos de profissão na rede pública de ensino, ela desafiava a si própria na tentativa educar e socializar jovens alunos dum bairro pobre da periferia do Recife.

Antônia andou por cerca de 50 metros, quando foi abordada por dois elementos numa moto, capacete na cabeça e discurso incisivo: “Passa a bolsa e não corre...” – falou um dos meliantes. Em seus 22 anos de vida, essa foi a primeira vez que ela recebeu voz de assalto, ainda que nenhuma arma lhe fora mostrada. Tensa, entregou o acessório e retornou andando, sentindo um misto de medo e raiva, sensação que refletia a humilhação de ser intimidada e lesada por estranhos. Restava-lhe voltar para casa e tomar as providências necessárias.

Tayane, naquela noite, não deu aula. Apenas três alunos compareceram e ela decidiu, assim, liberá-los. Ociosa, ao invés de voltar para casa, resolveu assumir a biblioteca, suprindo a ausência da responsável pelo setor. A consequente solitude no recinto a pôs num risco inesperado: os três alunos outrora liberados surgiram no local e decidiram fazer zoeira. Firme no propósito de controlar a situação, não percebeu um dos rapazes furtar-lhe a bolsa. Minutos depois da saída dos jovens, Tayane deu o acessório por falta e não conseguiu evitar a sensação de raiva e medo que lhe afetara, reflexo da humilhação de ser lesada pelos próprios alunos. Restava-lhe ligar para o marido e, com ele, tomar as providências necessárias.

Antônia, após extravasar toda sua angústia num choro inevitável, tratou de cancelar os cartões de crédito e bloquear o celular. Recebendo o apoio da família, contou com a ajuda do padrasto e dirigiu-se à Delegacia de Polícia mais próxima a fim de fazer um B.O. (Boletim de Ocorrência). O mesmo aconteceu com Tayane, que contou com o marido para providenciar idênticos procedimentos.

E foi no prédio policial que as histórias de Antônia e Tayane se cruzaram, a estudante e a profissional da educação envolvidas em situações afins, vivenciando um dos produtos mais cruéis da sociedade: a marginalidade. Elas retornaram para suas casas após os respectivos depoimentos sem sequer terem se conhecido – embora astuto tenha sido o destino.


P.S.: Na delegacia, logo após a entrega dos B.O., os policiais decidiram degustar o lanche da noite. O plantão prosseguiu a base de pão e mortadela. Nada mais pertinente numa noite tão insípida...